quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Cinco trovas de sete vidas

Sete vidas tem o gato.
A gente tem uma só.
Mais que sede e mais que fome,
mau amor nos leva ao pó.

Sete vidas tem o gato.
Eu quisera ao menos duas:
uma pra ser teu escravo...
outra pra ser rei das ruas!

Sete vidas tem o gato:
graduou-se em reviver.
A gente, porém, coitada,
já tem mestrado em sofrer!

Sete vidas tem o gato:
quase um banqueiro de vidas!
Mas nem mesmo em todas cabem
tantas voltas, idas, vindas...

Sete vidas tem o gato.
A gente tem uma só.
Sete saltos: rasos, altos?
Nossa vida uma é maior!

domingo, 22 de agosto de 2010

3 anos

A Repartição da Flor completa 3 anos. Ainda ontem estávamos sentados - numa ladeira de santa teresa - sem saber no que ia dar. Nossa primeira apresentação, quando éramos seis, consistia num expediente de trabalho completo e que nos mandava rasgar muitos papéis. Depois incorporamos o hábito, continuamos rasgando, até que restaram três membros e alguns rascunhos da estréia. O terno escuro e a camisa clara por baixo, a pequena flor de guardanapo, noites e luas de um vago tempo passado. Tudo isso faz lembrar um filme em preto e branco, que pode até mesmo ser mudo, já que poemas são mais escritos que falados. Oh, não me perguntem o diretor: Orson Welles, Fellini, Bergman? Não saberia dizer, talvez não chegue a cinema, mas apenas uma fotografia meio desgastada pelo tempo. No princípio acreditamos, ingenuamente, que essa indumentária acompanhava nosso papel de funcionários, e só depois descobrimos que era um luto. Já Fernando Pessoa não chegou tarde assim, ele sempre esteve ali, no amontoado de poemas, e se diferenciava de nós pela sua cartola. Era guardador de livros ou tradutor de cartas comerciais - de qualquer forma produzia papéis que poderíamos ter rasgado. Ele desejou o mundo, por isso fez a melhor poesia inspirada de nossa língua no século XX, por isso o vício em álcool e as viagens de Álvaro de Campos. Aliás, nunca poderia ter saído de sua escrivaninha. Quanto à gente, aprendemos um pouco sobre essas coisas em petrópolis. O que se parece mais com acordar numa garrafa de black label? Só um verso como este "meu coração é um balde despejado". Me lembro de um de nós acordar e ficar lendo todos os ingredientes daquele uísque, e depois de tecermos considerações eu abrir a janela. Sobre o lago do quintandinha a névoa fluía feito a marca-d'água, o céu estava perfeitamente branco, e a folhagem verde-escura parecia esquecer que precisava se ligar ao chão. É claro que poderia estar na escócia, pensei. Álvaro de Campos se formou em glasgow, Johnnie Walker é meu xará, estamos abaixo dos 10ºC. No fim, tudo terminou com uma quebra em nossas contas bancárias, o que não é mal, se pensarmos o que Lady Macbeth fez com toda aquela gente nesse país. Ah, creio que foi a partir daí que abandonamos as horas de trabalho: se é para representar, melhor que seja do final do expediente pra lá. Agora logo no início nós colocamos a garrafa na mesa, temos os poemas, o violão, e nunca mais foi preciso rasgar papel nenhum.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Dante Milano


No Rio de Janeiro dos anos 1920, avenida Almirante Barroso nº 18, funcionava um restaurante chamado Reis; casa de motoristas e carroceiros, recebia diariamente a visita de alguns amigos, entre eles Manuel Bandeira, Jayme Ovalle e Dante Milano. O prato, "bem baratinho", era bife à moda e entrava de tudo, com muito pão e arroz. Mais tarde passou a receber jornalistas, escritores, boêmios. Dantinho, como Bandeira o chamava, já fazia seus estudos de latim, rigorosamente, sem o qual sua poesia não seria a mesma. Mas também frequentava o mangue, a Lapa e os carnavais do Palace Hotel; viveu todas aquelas bem-aventuranças que anos depois fruiriam positivamente na história cultural do nosso país: a idade de ouro do samba, o Rio de Janeiro dos cinemas e cabarés, os tomates do modernismo, e o que considero triunfo particular daquela geração: o fim dos cafés parnasianos para o início das rodas de uísque. (Daí entrariam Vinicius e a casa de Aníbal Machado). Apesar disso, Dante Milano não se ateve aos acontecimentos, "c'est la mer qui m’intéresse", e escrevendo apenas o mesmo livro em toda vida, não mencionou nenhum deles. Essa poesia, em suas leis interiores, parece perfeita, límpida, meditada; não sendo à toa as influências dos mestres renascentistas, e nisso inclui-se as formas de Piero della Francesca, por exemplo. "Em literatura tudo que traz escrito na frente: beleza – é beleza falsa", foi o que disse Leopardi e me parece a maior lição que dele tirou Dante Milano. Mas, sem dúvida, em seus poemas, a noite também cai, apesar da harmonia de suas vogais e da clareza do seu estilo, um lento desespero arrefece a luminosidade de seus versos. Nota-se bem essa noite ao lado, intuída nos olhos pretos tapados por Portinari. Se João Cabral escrevia ao palo seco dos sevilhanos, o verso desse carioca é seco não de alguma lira, mas seco do italiano áspero e vulgar dos florentinos do medievo. Minha edição das suas obras completas eu achei num sebo da Praça XV, "bem baratinha", e frequentemente a tenho revisto em muitos aqui pelo Rio de Janeiro. Andando pelo Centro, agora nas férias, passei pela Almirante Barroso e me veio pensar nessa toada de amigos; hoje essa avenida é irreconhecível se compararmos ao que foi no tempo do Reis, quando ainda existia o morro de Santo Antônio, retirado na década de 50. O único prédio que subsiste é o antigo liceu literário, na esquina com Senador Dantas. Alguma nostalgia prende minhas pupilas sempre que passo ali com meu livro na mochila. Fico me perguntando como não se sentia Dantinho entre tanta folia e perdição clássica. Que silencioso céu ele não buscava enquanto punha e ouvia modinhas no violão de Jayme Ovalle, enquanto disputava com Sérgio Buarque velhos jogos eruditos na mesa dos botequins. Escreveu, por final, um único, variado e mesmo livro. “Poesias”. Perscrutando o esboço arquitetônico de suas estrofes e a lentidão tortuosa de suas pinceladas, de imagens plásticas, recuo ao seu solipsismo erudito, sua fama de artesão incansável, para ver tudo se desmentir num pequeno trecho, escrito por ele, sobre o amigo do peito – "Quem não acredita em inspiração, não conheceu Jayme Ovalle". Foi aí que se entregou, e nada poderá negar que a matéria de sua alta poesia talvez tenha saído de porres caducos no Palace Hotel. De aventuras insidiosas no mangue. Passeios melancólicos sob os oitis do Centro da cidade. Está claro, a fé do nosso poeta também recaía sobre a inspiração. "Correi, correi, ó versos sem palavras...".