sexta-feira, 2 de março de 2012

o pintor


▒▒▒Agora tudo não passava de um sonho. Mas era como se um feixe estivesse dentro dos olhos que cintilavam enormes. Porque agora ainda estava parado pulsando como uma pedra. Um feixe enorme que dentro dos olhos parecia deixá-lo num estado tão inflexível e sem brilho. Os olhos ardiam opacos. Agora não se poderia distinguir o dia ou a noite; embora não se pudesse distinguir também as cadeiras que se espalhavam em derredor, ou as muitas cores que se formavam numa única, ou as sombras que se misturavam aos feixes iluminados que misteriosamente habitavam o cômodo onde agora seus olhos pareciam impenetráveis. Porém, ele não conseguia reparar - mesmo completamente consciente com uma consciência que se adquire tão inconscientemente, lúcido e tão clarividente, dum clarão em seus olhos que se diria ser de um visionário sondando o futuro – com aquela consciência que desperta ao respirar a morte ele não conseguia distinguir o espaço impregnado. Mesmo tão consciente ele não conseguia saber de si mesmo naquele espaço indistinto. Mesmo naquele instante ele alcançava alguma coisa com os olhos. Alguma coisa indistinta. Agora, ele soube com um respiro seco e assustado “não, não, oh deus, não”; nada podia, entretanto, distinguir seus pensamentos naquele espaço. Eles ficariam indistintos entre os sons que se acumulavam inteiramente robustos na incrível longitude daquele agora. “Ah deus, sim, sim, eu vou”.
▒▒▒(De repente, como a luz vencesse as trevas e a memória fosse um descampado vasto em que se caminhasse inteiro: agora. Ele entrava no ateliê sozinho, tremendo quase feito a terra. Sua mão ficava em cada objeto, em cada paleta, em cada amarelo quedando lentamente ao chão como uma lágrima do sol. Ele espalhava as tintas, as jogava sobre as telas em branco daquele instante. Quase destruiu todo o quarto como se destruiria para sempre no instante após. As cores todas num revolto mar, e o vento eram suas mãos. Sem tinta, porém, seus olhos pingavam um sentimento pálido. Ele já não queria mais saber das cores, apenas lançava, agora, uma música horrível em gritos de maldição que regia como um maestro louco. Aquele agora foi completamente esgarçado pelo tremor daquele homem. Tanto foi que ainda (o agora) está em aberto como uma cicatriz crua e sem cores. Ele estava cego. Permaneceria completamente escuro, sem jamais chorar em colorida visão novamente. As coisas se confundiam agora numa queda vertiginosa. Aquele que fizera o mundo em cores que o próprio mundo desconhecia estava destinado ao silêncio de um preto profundo. Já não cantaria no azul rasgando o céu, a imensidão das árvores, como uma banda, na sinfonia verdamarela da dança íntima com o sol, o mais antigo pintor. Estava, agora, caído no chão. Pois, se já não via mais, então, ele sentiria o gosto mais íntimo de tudo com essa fome intragável, que já não podia ser saciada. Apagadas as cores da vida, ele comia o vermelho de tudo o que já vivera entre os olhos e as mãos. O lilás descia pelo corpo lírico quanto um crepúsculo elegíaco. Como um bêbado que a cada copo busca o sabor há muito perdido, ele engoliu todas as tintas de seu ateliê, saboreando cada sentimento que deixava para trás. Estava feito. Tudo se escoara e a tela estava em branco novamente como sempre esteve, embora ele lutasse como o sol que mesmo sabendo que a noite sempre virá com seu império inconciliável, a cada dia luta. Agora, ele estava no chão com olhos enormes sem distinguir mais o mundo; naquele brilho fascinante, impenetrável para qualquer um que o visse. Nenhuma palavra ou cor poderia saber do que ele viu naquele momento. “Não, não, oh deus, não”. Agora, ele estava sem sorrir ou chorar; tudo passava tão vertiginoso e sem distinção que ele soube do sonho colorido que vira tão brevemente, embora visse agora tão mais brevemente e sem distinção. Mas, agora, como num milagre perfeito, as cores paravam daquele carrossel absurdo e ele podia ver tudo claramente, sem borrão, pois, agora, tudo parecia tão perfeito e a luz resplandecia ultrapassando o destino de seus olhos e mesmo as cores pareciam novas e nunca antes vistas, como cores mágicas e delirantes. Então, ele finalmente viu uma pintura profética que um homem vê uma ou duas vezes na vida. Ele viu perfeitamente e foi. “Ah deus, sim, sim, eu vou”.)