terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ouro Preto

▒▒▒De alguma forma, a minha imagem de Ouro Preto nunca foi a metafísica. Meu primeiro contato com a cidade foi na escola, com a chegada de um amigo que nasceu por lá, e foi ele quem me apresentou tudo isso. Recordo que a principal coisa que trazia de Ouro Preto era a história de um desencontro amoroso, um delicado nó feminino, que seria desatado mais tarde; aconteceu mais ou menos quando li Manuel Bandeira pela primeira vez, o que me despertou para o sofrimento do amor ao mesmo tempo em que meu amigo a esquecia. Depois, quer dizer, se não fosse o colégio e aquelas aulas maçantes que matávamos, creio que nem ele a teria esquecido, nem eu teria ficado sem conhecer o declínio de Vila Rica. Mas esse desconhecimento foi importante para conservar, por mais tempo, a imagem que eu guardava dela.
▒▒▒Não tenho dúvidas de que a lua é uma em cada parte. Na praia do sono é algo como o bairro de amaralina, ou uma personagem de contos de areia. Nas grandes cidades é uma extensão obscura dos postes de luz, encardida até nos bairros mais nobres. Sem contar a lua da estrada, que nos concede a sensação de estarmos realmente viajando e vivendo como se deve viver. São diversas, muitas luas. Em Ouro Preto fui descobrir porque ela também se liga intimamente à mulher e ao amor.
▒▒▒Ave, Maria, luar... foi pelo amor que eu conheci a história de Vila Rica, antes de conhecê-la. Mesmo quando lia um empoeirado volume da biblioteca municipal, contando a história de Antônio Dias, do sangue que vazava pelo arraial do Padre, do sonho foiçado de muitos pretos e muitos capitães do mato, eu não conseguia mais me desfazer daquela primeira ideia. Ainda só imaginava a cidade à noite, sem lua, com uma espessa bruma, e isso me desamparava, mas foi até descobrir a lira de Dirceu. O que muita gente ignora é que a maior parte das igrejas só foram construídas depois de 1750, ou seja, quando chegaram a decadência e o iluminismo. Não é à toa que Jaime Cortesão espalhava que o Aleijadinho, contemporâneo dos conspiradores, foi o maior de todos os revolucionários, pois declarou através da arte, a independência do Brasil.

▒▒▒Apenas me sentar, então, movendo
▒▒▒▒▒▒os olhos por aquela
▒▒▒vistosa parte, que ficar fronteira,
▒▒▒apontando direi: – Ali falamos,
▒▒▒▒▒▒ali, ó minha bela,
▒▒▒▒▒▒te vi a vez primeira.

▒▒▒Cantou Dirceu. Hoje reconheço que esses poemas, sem que eu soubesse, interdiram a entrada do inferno, dos profetas e dos pecados neste meu imaginário sobre Ouro Preto, que ora tento delinear. Todos que visitam a cidade sentem uma sensação comum: o cansaço. Ladeiras e mais ladeiras, com seus paralelepípedos – telhas de um tempo enxugado de dor , suas quinas, esquinas, trevos, tortuosas ruelas, tudo parecendo repetir a dura lição de que para toda descida haverá uma subida de pedras; esse cansaço, bem, talvez seja o que me recordasse constantemente da névoa metafísica, mas, apesar disso, não me impediu de continuar deslumbrado pela lua. Ave, Maria, luar... mesmo nunca tendo visto, é fácil imaginar uma procissão ali, até porque, em algumas noites você parece vê-las realmente. Ano passado viajei para Ouro Preto, numa viagem que eu chamaria 'quase uma lua de mel.
▒▒▒De todas as igrejas, pinturas, objetos, pouca coisa me impressionou tanto quanto um pequeno Cristo flagelado que fica no museu da inconfidência. Dizem ser uma escultura do Aleijadinho. Há um sofrimento tão vivo, que me fez pensar imediatamente no príncipe Michkin, na antiga Cafarnaum, nos versos me conta por que mistério/ o amor se banha na morte de Drummond na "morte das casas de Ouro Preto"; profundamente comovido, saí em direção à praça e sentei-me: poucos minutos depois estaria beijando minha namorada. De todas as escadarias daquela cidade, nenhuma delas deixou de nos convidar para um passeio de mãos dadas, nem mesmo sob a noite, nem sob a lua. Só com um imaginário amoroso sobre a cidade é que pude descobrir o que diz aquele Cristo flagelado, num cubo de vidro, dentro daquele museu. Que sempre estará ali, zelando a memória de cada alma torturada, negro açoitado, de cada injúria contra a liberdade. Mas vivendo num museu, o pequeno Cristo também olha-nos-olhos e clama para que inventemos um novo sentido para Ouro Preto, e foi por isso que fui para a praça e a beijei muitas vezes.
▒▒▒Sair em lua de mel para lá é ainda melhor se você levar alguns livros certeiros. Drummond, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, e até mesmo Guimarães Rosa. Para aqueles que, além da cidade, também forem buscar a outra lua de que andei falando, podem levar Hugo, Verlaine, ou aquele famoso Virgílio de Per amica silentia lunae. Se andarem com calma, num dia claro, e de mãos dadas, mesmo que estejam sozinhos, é possível atrair surpresas. Assim como é possível notar a procissão quando noite, de dia é possível observar Murilo sentado num café com as pernas cruzadas, ou Carlos às voltas com a Igreja do Rosário, desfiando sua máquina do mundo. Sem querer, podem dar até com um Manuel Bandeira onésimamente feliz, espiando as moçoilas da calçada. Subir a rua direita sem tomar uma cachaça, passar batido pela casa de Guignard, não dar preferência à uma janela panorâmica, eis os verdadeiros pecados que ora não devem ser cometidos em Ouro Preto. Ave, Maria, amor...



▒▒▒Mas a lição apreendida que me fez sentir, ali mesmo, a intimidade entre as mulheres e a lua, veio do barroco. Quando anoitece em Ouro Preto, logo aquelas ladeiras se iluminam de luzes incandescentes, a maioria das regiões ficam escuras, e com as igrejas fechadas, todas as ruas agora parecem conduzir à praça Tiradentes. Se você não estiver numa rua com movimento, possivelmente entrevirá a dita procissão, mas se estiver na praça, sob a lua, com a sua amada, possivelmente assistirá um belo sorriso feminino. A explicação desconheço; mas penso, estando no alto da cidade, e tendo acima de si, não Deus, mas a lua (sem névoas para ela), como se hipnotizasse a semântica, a mulher torna o luar adjetivo, e veste-se dele como a um véu, assim como um poema veste-se de um soneto. Mas por que? Estão investidas de amor, prontas para amar. Disso elas já sabiam muito antes de todo calvário, de todo remorso, e do pequeno Cristo. A cidade é feita para amar. Sentem-se em casa na noite, no alto, e perto da maravilhosa luz, prateada; que no entanto é um véu e que não se deixa tirar. A lua e as mulheres, como um beijo no escuro, acabam sem nos deixar ver... onde uma começa e a outra acaba.

Vem a Verônica
Decapitar
– Mas por amor –
O chefe do ar,
Vem a Verônica
Luar, luar
.

▒▒▒Disse Murilo Mendes em "Contemplação de Ouro Preto". A pista é dele.
▒▒▒As fotos são de Luciana Goiana, a quem dedico esse poema de amor.

5 comentários:

luciana disse...

essas são as fotografias e outras memórias de nosso presente, de nosso agora. obrigada pela alegria e também pela lua, meu amor. te amo infinito.

josé agapanto disse...

Ao Aleijadinho

Pálida a lua sob o pálio avança
Das estrelas de uma perdida infância.
Fatigados caminhos refazemos
Da outrora máquina da mineração.


É nossa própria forma, o frio molde
Que maduros tentamos atingir,
Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados,
Sem crispação, matéria já domada,

O exemplo recebendo que ofereces
Pelo martírio teu enfim transposto,
Severo, machucado e rude Aleijadinho

Que te encerras na tenda com tua Bíblia,
Suplicando ao Senhor – infinito e esculpido –
Que sobre ti descanse os seus divinos pés.

(Murilo Mendes)

josé agapanto disse...

Acho um dos mais bonitos sonetos da nossa literatura.

cassilima@yahoo.com.br disse...

Belissíma crônica,
que forjou mais uma Lua suspensa ao lado dos satélites inefávies dos grandes poetas. Achei linda as imagens dos enamorados de mãos dadas, (As almas dos poetas solitários, se ainda flanam perdidas pelas ladeiras de Ouro Preto, devem ter ficado com inveja-, ou talvez tenham ficado encantados, com a singeleza desse amor.
Um grande abraço João,
Cassiana

josé agapanto disse...

Ouro Preto feita para o amor, Cassi! beijão