No Rio de Janeiro dos
anos 1920, avenida Almirante Barroso nº 18, funcionava um
restaurante chamado Reis; casa de motoristas e carroceiros, recebia diariamente
a visita de alguns amigos, entre eles Manuel Bandeira, Jayme Ovalle e Dante
Milano. O prato, "bem baratinho", era bife à moda e entrava de tudo,
com muito pão e arroz. Mais tarde passou a receber jornalistas, escritores, boêmios.
Dantinho, como Bandeira o chamava, já fazia seus estudos de latim,
rigorosamente, sem o qual sua poesia não seria a mesma. Mas também frequentava
o mangue, a Lapa e os carnavais do Palace Hotel; viveu todas aquelas
bem-aventuranças que anos depois fruiriam positivamente na história cultural do
nosso país: a idade de ouro do samba, o Rio de Janeiro dos cinemas e cabarés,
os tomates do modernismo, e o que considero triunfo particular daquela geração:
o fim dos cafés parnasianos para o início das rodas de uísque. (Daí entrariam
Vinicius e a casa de Aníbal Machado). Apesar disso, Dante Milano não se ateve
aos acontecimentos, "c'est la mer qui m’intéresse", e
escrevendo apenas o mesmo livro em toda vida, não mencionou nenhum deles. Essa
poesia, em suas leis interiores, parece perfeita, límpida, meditada; não sendo
à toa as influências dos mestres renascentistas, e nisso inclui-se as formas de
Piero della Francesca, por exemplo. "Em literatura tudo que traz escrito
na frente: beleza – é beleza falsa", foi o que disse Leopardi e me parece
a maior lição que dele tirou Dante Milano. Mas, sem dúvida, em seus poemas, a
noite também cai, apesar da harmonia de suas vogais e da clareza do seu estilo,
um lento desespero arrefece a luminosidade de seus versos. Nota-se bem essa
noite ao lado, intuída nos olhos pretos tapados por Portinari. Se João Cabral
escrevia ao palo seco dos sevilhanos, o verso desse carioca é seco não de
alguma lira, mas seco do italiano áspero e vulgar dos florentinos do medievo.
Minha edição das suas obras completas eu achei num sebo da Praça XV, "bem
baratinha", e frequentemente a tenho revisto em muitos aqui pelo Rio de
Janeiro. Andando pelo Centro, agora nas férias, passei pela Almirante Barroso e
me veio pensar nessa toada de amigos; hoje essa avenida é irreconhecível se
compararmos ao que foi no tempo do Reis, quando ainda existia o morro de Santo
Antônio, retirado na década de 50. O único prédio que subsiste é o antigo liceu
literário, na esquina com Senador Dantas. Alguma nostalgia prende minhas
pupilas sempre que passo ali com meu livro na mochila. Fico me perguntando como
não se sentia Dantinho entre tanta folia e perdição clássica. Que silencioso
céu ele não buscava enquanto punha e ouvia modinhas no violão de Jayme Ovalle,
enquanto disputava com Sérgio Buarque velhos jogos eruditos na mesa dos
botequins. Escreveu, por final, um único, variado e mesmo livro. “Poesias”.
Perscrutando o esboço arquitetônico de suas estrofes e a lentidão tortuosa de
suas pinceladas, de imagens plásticas, recuo ao seu solipsismo erudito, sua
fama de artesão incansável, para ver tudo se desmentir num pequeno trecho,
escrito por ele, sobre o amigo do peito – "Quem não acredita em
inspiração, não conheceu Jayme Ovalle". Foi aí que se entregou, e nada
poderá negar que a matéria de sua alta poesia talvez tenha saído de porres
caducos no Palace Hotel. De aventuras insidiosas no mangue. Passeios
melancólicos sob os oitis do Centro da cidade. Está claro, a fé do nosso poeta
também recaía sobre a inspiração. "Correi, correi, ó versos sem
palavras...".
3 comentários:
Só não fala assim dos cafés parnasianos...
Não precisa chorar, eles já voltaram... sempre voltam, são as velhas oligarquias e o seu café com leite.
Salmo Perdido
Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
(Dante Milano)
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